Dra. Kátia é daquelas figuras que a gente não esquece. Pesquisadora respeitada, gaúcha de fala mansa e ideias firmes, trocou uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul por Boston nos E.U.A. há alguns anos, quando foi convidada para integrar um grupo de pesquisa em neurociência na Harvard School of Dental Medicine. Mas nunca perdeu o hábito de voltar para casa — nem que fosse só por uma semana, para o calor do chimarrão e o cheiro de bergamota no fim da tarde.

Naquela manhã de sexta-feira, a mala estava pronta. O voo sairia às 21h com destino final Boston. Mas o que era para ser o início de dias felizes foi interrompido por uma dor aguda e imprevista. Era como uma fisgada que nascia no fundo do maxilar e irradiava para o ouvido. Primeiro pensou ser o frio — afinal, Porto Alegre no inverno.… Depois, percebeu que era mais profundo. Mais sério.

Dra. Kátia sabia do que se tratava. A dor era típica de uma pulpite: a inflamação da polpa dentária, aquele miolo vivo do dente, que carrega fibras nervosas tipo C — lentas, mas implacáveis. Aquelas fibras que ela mesma estudava em artigos científicos e explicava em congressos ao redor do mundo.

No consultório de emergência, a confirmação: a infecção estava avançando. A dor tinha sido o último sinal de alerta antes do comprometimento irreversível. Viajar agora? Impensável. A prioridade era conter o dano e evitar algo muito mais perigoso: uma infecção sistêmica.

Dra. Kátia perdeu o voo. Mas ganhou tempo, saúde e talvez algo ainda mais valioso — um lembrete vívido do quanto o corpo é sábio. A dor que a despertou naquele dia gelado enquanto visitava Porto Alegre foi, na verdade, um presente. Um aviso de que algo precioso ali dentro ainda podia ser salvo.

“Dor não é punição. É proteção.”— ela diria depois, ao explicar o episódio a seus alunos. Porque a dor é isso: a maneira mais humana — e mais crua — que o corpo tem de pedir cuidado.